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Cristo se fez pão?


Juliano Ribeiro Almeida

         O Concílio Vaticano II ensina que “os textos destinados ao canto sagrado devem estar de acordo com a doutrina católica e inspirar-se sobretudo na Sagrada Escritura e nas fontes litúrgicas” (Sacrosanctum Concilium, n. 121). A Instrução Geral do Missal Romano (3ª ed.), ao falar especificamente do canto de comunhão na celebração eucarística, repete o que já estabelecera sobre o canto de entrada (n. 48) e o da preparação das oferendas (n. 74), isto é, determina que seja “adequado, aprovado pela Conferência dos Bispos” (n. 87). Apesar de a CNBB ter publicado um Hinário Litúrgico oficial, ela não obriga as assembleias a usarem apenas estes hinos aprovados. O texto do Diretório da Liturgia apenas fala em “orientações”; por isso, as dioceses e movimentos têm tido total liberdade de confeccionar seus próprios hinários alternativos; e em geral os grupos musicais que sustentam o canto litúrgico se sentem livres para escolher à vontade os hinos, e inclusive compor novos, sem qualquer verificação por parte do bispo local e, muito menos, da Conferência episcopal. Ótima liberdade? Talvez nem tanto, por se tratar de um sério risco.
            A liturgia é importante não só pela sua performance artística, estética e emocional, mas sobretudo por ser a maior “catequista” do povo católico. Acabamos crendo naquilo que rezamos ou cantamos nas celebrações. Aprendemos as verdades da fé pelas cartilhas que temos em mãos. Tanto é assim que, no século IV, a terrível heresia do arianismo difundiu-se pela Igreja não por meio da publicação de livros, mas “repetiam-se refrões de cânticos que o próprio Ário compusera e nos quais, sob a piedosa suavidade de palavras edificantes, se escondiam erros abomináveis” (A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires, Daniel-Rops, p. 450-451).
            Assim, é importante estar atento mais ao “que” cantamos do que ao “como” cantamos. A clareza e exatidão dos conceitos, sem confusões, e a concordância do texto com o ensino perene da Igreja têm prioridade sobre a beleza da afinação, dos acordes e das famigeradas “animação” e “criatividade”. Muito mais do que os erros crassos de concordância e conjugação verbal, mais do que a mistura grotesca de diferentes pronomes pessoais na mesma oração, muito me preocupam os erros teológicos, especialmente os relativos à comunhão eucarística.
            A música Pão da vida (composição de “Paulão”, gravada pelo Pe. Jonas Abib), diz: “Na comunhão, Jesus se dá no pão...”. Ora, esta afirmação não expressa a fé católica na transubstanciação, mas sim a fé luterana na consubstanciação. A Igreja católica sustenta que, na Eucaristia, as substâncias do pão e do vinho se mudam totalmente na substância do corpo e sangue de Cristo, de modo que, a partir de então, tudo que era pão e vinho passa a ser esta nova realidade substancial: a Pessoa inteira do Filho encarnado. Por sua vez, pelo conceito de consubstanciação, Martinho Lutero ensinava que, na ceia eucarística, não ocorreria mudança alguma na substância do pão e do vinho; apenas as substâncias do corpo e sangue de Cristo viriam espiritualmente habitar o mesmo espaço que a substância daqueles alimentos. Jesus se dá no pão significa que a substância do pão seria uma espécie de “veículo” que transportaria a substância de Cristo. O mesmo está dito na composição de José Thomaz Filho e Frei Fabreti: “Vem dar-nos teu Filho, Senhor, sustento no pão e no vinho”; ou seja: Cristo estaria “no” pão, algo como uma espécie de “sanduíche” em que o “recheio” seria Cristo... Ironias à parte, definitivamente não é essa a fé católica.
            Ainda mais problemática é a afirmação que parece ter virado moda em composições católicas das últimas décadas: a de que na Eucaristia Cristo se transforma em pão, quando a fé católica diz justamente o contrário: o pão é que se transforma em Cristo. Seguem alguns poucos exemplos, apenas entre as canções mais conhecidas: “Como um Deus tão grande e soberano se faz pequeno, um pedaço de pão?...” (Milagre de amor, de Juliana de Paula); “Grande mistério de amor! Tão verdadeiro e tão singelo: se fez tão pequeno neste simples pão” (Estar contigo, de Walmir Alencar); “Verbum panis factum est...”, o que significa: “o Verbo se fez pão” (do italiano Mite Balduzzi, com versão brasileira gravada pelo Ministério Amor e Adoração). Nossa fé não diz que Cristo se faz pão. É, antes, o contrário: o pão é que se faz Cristo! Assim diz a oração pós-comunhão do 27º domingo do Tempo Comum: “para que sejamos transformados naquele que agora recebemos”. Contudo, é possível expressar esta mesma ideia recorrendo a uma afirmação aparentemente oposta, como escreve Santo Agostinho: “Não me transformarás em ti, como fazes com o alimento do corpo, mas te transformarás em mim” (Confissões, VII, 10); isto é, concede-se dizer que na Eucaristia Cristo “se transforma em nós” por meio da comunhão sacramental, mas não que ele se transforma em pão.
            É bem verdade que isso pode querer dizer que Cristo se fez o “pão da vida”, como afirma o capítulo 6 do evangelho de João. Foi o que o Papa Francisco expressou na homilia da solenidade de Corpus Christi de 2019: “Diante da Eucaristia, de Jesus que se fez Pão, deste Pão humilde que contém a totalidade da Igreja...” etc. Da mesma forma, Ratzinger refere-se ao Senhor que “fez-se ‘pão’ por nós, isto é, ao Senhor que, mediante a sua encarnação e a sua autodoação na morte, tornou-se aquele que é aberto por nós” (Obras completas, v. XI, p. 200). Observe-se que o editor faz questão, no primeiro caso, de grafar Pão com inicial maiúscula, e, no segundo caso, colocar a palavra “pão” entre aspas, para deixar claro que se referia não à espécie do pão material, mas ao “pão vivo descido do céu”, que é uma antonomásia, figura de linguagem que substitui, para efeitos poéticos, o nome do objeto por uma adjetivação simbólica que se lhe atribui. É o mesmo que se fez na oração eucarística V: “E quando recebermos Pão e Vinho, o Corpo e Sangue dele oferecidos...”. Nesses casos, foi necessário destacar, de alguma forma, a diferença entre pão e Pão, entre a matéria do sacramento e o mistério transubstanciado; ou seja, o pão ázimo se transforma naquele que é chamado “o Pão vivo descido do céu”.
De fato, se a Revelação nos tivesse dado apenas o discurso eucarístico de João, não seria possível afirmar a transubstanciação. Mas, como ela nos deu também as narrativas da instituição dos evangelhos sinóticos, fica dirimida a questão: quando Jesus disse “Eu sou pão” (Jo 6,35.48), ele não estava querendo dizer que se transformara em trigo amassado com água, e sim que seria nosso alimento espiritual, nosso viático etc. Mas ele disse também: “isto é o meu corpo”, ou seja, o pão sou eu: o que tem a aparência de pão na verdade é a minha carne.
É preciso entender bem o sentido desta fé: na Eucaristia, não é que Jesus coexista com o pão, ou seja transportado pelo pão, ou simbolizado, significado, substituído pelo pão. Se na consagração Cristo se tornasse pão, então nós estaríamos comendo não a carne de Deus, mas simplesmente pão; e estaríamos não adorando a Pessoa do Verbo, mas cometendo a horrível idolatria de que muitos protestantes nos acusam. Jesus é Deus e, por isso, imutável, não sujeito a mudança. Ele é absoluto, não podendo ser reduzido a um pedaço de matéria. É bem o oposto o que acontece: a simples matéria é que, uma vez consagrada, é elevada pela divindade. Nossa teologia sacramental ensina que, por causa da união hipostática, a matéria passa a ser assumida por Deus; e por isso, a matéria se torna sinal eficaz da graça invisível. Cremos que, conforme expressa o vocabulário aristotélico, no mistério eucarístico, sob os acidentes intactos de pão (dimensões, aparência, odor, sabor etc.), a substância do pão (isto é, sua essência, o que ele é para além dessas aparências) “sai” totalmente dele para dar lugar à substância da carne do Senhor.

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