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O artístico e o artificial na liturgia


Tanto arte quanto artifício vêm do termo latino ars, artis, que, por sua vez, vem do grego techne, que também foi traduzido diretamente para o português pela palavra técnica. De ars, artis também provêm as palavras artesão/artesanato, arma/arsenal, sempre no sentido de coisas produzidas pela atividade humana.

Arte e artifício significam algo que é produzido por meio de uma habilidade técnica. Porém, em seus desenvolvimentos ao longo da história, essas duas palavras foram se distanciando uma da outra: o artístico é a produção que visa a estética, no sentido oposto ao meramente funcional; e o artificial, por sua vez, é a produção que visa à praticidade, no sentido oposto àquilo que é natural. Ambos querem ir além do comum e rotineiro, mas enquanto o artístico faz isso pela transcendência simbólica, o artificial o faz burlando as limitações impostas pela natureza. Além disso, o artístico é aquilo que remete a algo maior e convida a olhar para o horizonte de significados; e o artificial é aquilo que simplesmente quer substituir o real, convidando a olhar para dentro da própria coisa.

Na liturgia, o artístico e o artificial são absolutamente adversários um do outro. O artístico sempre favorece o litúrgico e está presente na beleza das imagens, na harmonia musical, na sobriedade dos gestos, na coerência dos símbolos, na leveza da repetição ritual. O artificial, porém, insiste em atrapalhar a linguagem litúrgica, “caindo de paraquedas” no espaço sagrado por meio de flores de plástico, execução de gravações no lugar do canto, caixas acústicas ensurdecedoras, iluminações mágicas com pisca-piscas, neóns e LED’s, teatrinhos para substituir a solene narrativa sagrada, apresentação de fotos e vídeos em vez do estímulo à meditação, excessos de discurso para destruir o silêncio e banalizar o mistério, enxurrada de informações que dilui a experiência com o divino. Quando nos deparamos com um sorriso que nos parece falso, dizemos que foi um sorriso artificial. Logo, o artificial pode ser bom em áreas como na medicina e na ortopedia, mas na liturgia ele nunca é bem-vindo porque, sob o pretexto de facilitar as coisas, ele acaba enfraquecendo a nobreza e o valor que elas têm.

Pensemos, por exemplo, nos teclados que imitam sons de uma banda inteira; esses artifícios produzidos pelos instrumentos eletrônicos, tão disseminados em nossas comunidades, são, em geral, de péssimo gosto litúrgico, porque criam a ilusão de que há pessoas tocando com devoção aqueles instrumentos para a glória de Deus, sendo tudo mentira, quando a linguagem litúrgica deve se pautar pela verdade e simplicidade. O Concílio Vaticano II dedicou o capítulo 6 da constituição sobre liturgia exclusivamente à música. Ali se diz: “A tradição musical da Igreja é um tesouro de inestimável valor, que excede todas as outras expressões de arte. [...] A música sacra será, por isso, tanto mais santa quanto mais intimamente unida estiver à ação litúrgica, quer como expressão delicada da oração, quer como fator de comunhão, quer como elemento de maior solenidade nas funções sagradas. A Igreja aprova e aceita no culto divino todas as formas autênticas de arte, desde que dotadas das qualidades requeridas” (SC 112).

Definitivamente, baterias e guitarras barulhentas – e ainda por cima falsas! – estão longe de ser “expressão delicada da oração” e “formas autênticas de arte”.

Diz ainda a Sacrosanctum Concilium: “Tenha-se em grande apreço na Igreja latina o órgão de tubos, instrumento musical tradicional e cujo som é capaz de dar às cerimônias do culto um esplendor extraordinário e elevar poderosamente o espírito a Deus. Podem utilizar-se no culto divino outros instrumentos, segundo o parecer e com o consentimento da autoridade territorial competente, [...] desde que esses instrumentos estejam adaptados ou sejam adaptáveis ao uso sacro, não agridam a dignidade do templo e favoreçam realmente a edificação dos fiéis” (SC 120).

O critério está dado claramente: os instrumentos utilizados na música litúrgica devem “elevar o espírito a Deus”, “não agredir a dignidade do templo e favorecer a edificação dos fiéis”. Alguém aí se sente elevado ao céu ao som de um forró, um samba ou um reggae? Ora, se os artifícios produzidos por esses instrumentos produzem ritmos e melodias que não convidam à oração, devem ser evitados. Há que se discernir que tipo de música cabe num momento de animação e entretenimento e que tipo de música serve mais para o caráter espiritual do culto litúrgico.

Um outro exemplo: o uso de projetores multimídia durante as celebrações. A preocupação ecológica fez com que muitos se precipitassem em substituir os folhetos por projeções de power-points com os hinos litúrgicos. E, para piorar, passaram em seguida a projetar também os textos bíblicos e até mesmo as orações eucarísticas. Em alguns lugares, chega-se a projetar imagens entre um rito e outro...

Quanto a isso, já existe uma orientação da Igreja. Em 2011, a Comissão Episcopal de Pastoral Litúrgica da CNBB publicou uma nota intitulada “O uso do projetor multimídia na liturgia – elementos para a reflexão”. Diz ela: “O uso do projetor multimídia na liturgia, como estamos vendo, além de interferir na ação ritual, entra em competição com a liturgia, gerando distração. O uso didático do projetor multimídia, utilizando aparelhos (computador, fiação, projetor, mesa, telão), sem dúvida interfere na composição e na estética do próprio espaço celebrativo enquanto 'sinal e símbolo das coisas divinas' (cf. IGMR 288). Dependendo da localização, não seria o projetor multimídia um elemento estranho ao espaço celebrativo, dificultando a execução das ações sagradas e a ativa participação dos fiéis? Na verdade, com o uso desses aparatos corre-se inclusive o risco de tornar o espaço celebrativo em quase 'sala de aula', de 'conferência', ou uma extensão da minha 'sala de TV'” (n. 13-14).

É preciso não somente seguir as normas estabelecidas pela Igreja, mas também – e sobretudo – usar o discernimento, a prudência e o bom senso no planejamento do espaço e do rito litúrgico, a fim de que haja mais arte e menos artifícios em nossas celebrações.



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