Juliano Ribeiro Almeida
Os cidadãos desobrigados a apoiar o atual governo federal
ficamos estarrecidos diante da fala do ex-ministro do meio ambiente Ricardo Salles
na polêmica gravação da reunião ministerial de 22/04/2020, em que propunha
aproveitar o momento em que a mídia estava focada na pandemia para “ir passando
a boiada” das regulamentações ecológicas, afrouxando-as para favorecer o
agronegócio. A expressão faz parte da alegoria do “boi de piranha”: para
conduzir uma boiada para a outra margem do rio, o boiadeiro joga um animal que
esteja velho ou doente para atrair a atenção das piranhas; e enquanto aquele
coitado é devorado, toda a boiada passa com tranquilidade. A intenção de quem
quer “passar a boiada” é tirar vantagem de uma crise, transformando-a em
oportunidade para avançar sub-repticiamente.
O pontificado do Papa Francisco, em certo sentido, está
sendo “boi de piranha” para teólogos e pastores que pretendem “passar a boiada”
da Tradição e do Magistério, para implantar novidades de doutrina e pastoral no
catolicismo. É comum ouvir, em ambientes eclesiais, que precisamos aproveitar
esse papado ao máximo para tirar a Igreja do obscurantismo e atraso que os
papas anteriores nos impuseram. Estão tais articuladores dispostos mesmo a
manipular e distorcer o que Francisco tem dito e escrito. Isso aconteceu com Amoris
Laetitia, que não mudou a doutrina sobre o matrimônio (e nem teria esse
poder!), mas é (ab)usada por quem quer liberar, sem critérios, a absolvição e
comunhão para casos de irregularidade conjugal. Aconteceu com a entrevista que
o Papa deu para o documentário Francesco, editada de forma a parecer que
o catolicismo passou a reconhecer todo tipo de união como matrimônio. E já está
acontecendo também com o conceito de sinodalidade, proposto pelo Santo Padre, que
no senso comum parece ser a democratização da Igreja, forçando a barra para
fazer sensus fidei significar consenso à base de votação de maioria.
Como o Papa Francisco não é de dar explicações para
dirimir dúvidas, tudo vira uma guerra de narrativas. No responsum de
22/02/2021, a Congregação para Doutrina da Fé esclareceu que ministros da
Igreja não podem abençoar uniões homoafetivas, por configurarem práticas sexuais
fora do sacramento do matrimônio, o que a Tradição da Igreja sempre considerou
pecado grave. O texto termina afirmando: “O Sumo Pontífice Francisco [...] foi
informado e deu seu assentimento”. Mas o website do Instituto Humanitas,
da faculdade Unisinos, em 24/03/2021, traduziu e publicou um artigo de Jesús
Bastante, com o título “Francisco contesta a Doutrina da Fé”, com a alegação de
que o Papa, tendo dito no dia anterior que “o anúncio do Evangelho requer a
valentia de escutar a realidade”, estaria boicotando seu próprio pontificado, e
aprovando a rebelião de bispos e presbíteros alemães que abençoam tais uniões.
Mas quando convém pintar um Papa Francisco no extremo
oposto, também se apela para fake news. Recentemente, os jornais
noticiaram o absurdo: o Vaticano se posiciona contra projeto de lei italiano de
combate à homofobia. E jornalistas esbravejaram: “Como é possível a Igreja ser
contra uma lei que protege a dignidade e a integridade da pessoa humana?!” É
que, em geral, omite-se o verdadeiro motivo pelo qual a Santa Sé se opõe ao
intento: o conceito de homofobia do projeto alarga-se a tal ponto que se pode
considerar homofóbica até mesmo a afirmação bíblica de que o ato homossexual seja
pecado, sob o risco, inclusive, de que futuramente um casal homoafetivo possa
alegar estar sendo vítima de discriminação se lhe for negado o casamento na
Igreja.
Narrativa, tudo não passa de narrativa. Estaríamos nós
inevitavelmente caminhando para a era da “pós-verdade”? O que importa não é o
que aconteceu, mas o que é dito sobre o que pareceu acontecer? Ultraconservadores
e ultraprogressistas, se não conseguem dialogar para entrar num grande acordo
pela busca sincera da verdade objetiva das coisas, precisam ao menos rever os
critérios éticos de seus impulsos de instrumentalização do discurso em vista do
fim que almejam, com mais cautela e cuidado com a palavra em seus textos, contextos
e pretextos. Afinal, logos significa tanto palavra quanto ciência, tanto
discurso quanto sabedoria. Rebaixar logos a mera doxa (opinião) é
colocar em risco os conceitos basilares da nossa inteira civilização.